A Sombra do Criador (Novel) - Capítulo 22
Capítulo 22: Descobertas.
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Sem trocar mais palavras, Raven e Lytharia correram em silêncio pela floresta, com a tensão ainda pulsando no ar. Nenhuma flecha mais os perseguia, e o som das armaduras e armas humanas finalmente havia ficado para trás. Ao chegarem a uma grande árvore onde Elric esperava com Thalion ainda desacordado, Raven parou por um momento e bateu as mãos contra o corpo, conferindo se tinha sido atingido.
Ao perceber que ele e Lytharia estavam ilesos, Raven soltou um suspiro aliviado e, com uma expressão grave, perguntou:
— Que bom que saímos inteiros… Você viu quantos soldados do império tinham lá?
Lytharia permaneceu em silêncio por alguns segundos, sua expressão mostrando o pânico que tentava disfarçar. O suor frio escorria por seu rosto, e suas mãos ainda tremiam. Era claro para Raven que ela temia que o assentamento já tivesse sido descoberto.
— Sim, estamos bem, mas precisamos ir à aldeia imediatamente. Acho que… acho que precisamos nos preparar para uma retirada, antes que o império faça alguma coisa, disse ela, a voz firme, embora tomada pela urgência.
Elric, ao ouvir aquilo, balançou a cabeça, assimilando a gravidade da situação, e perguntou:
—Então havia mesmo um destacamento de soldados… Quantos eram além daquele que estava nos seguindo?
Raven colocou a mão no queixo, repassando mentalmente o que havia visto em meio à vegetação densa.
— Não consegui contar com precisão. Talvez vinte, trinta… é difícil dizer. A floresta estava muito fechada, só pude ver alguns deles. Mas seja quantos forem, eles estavam organizados e prontos para agir.
Ao ouvir isso, Elric e Lytharia trocaram um olhar sombrio, compartilhando um entendimento silencioso. Raven percebeu rapidamente: aquela tensão e medo não eram novidade para eles —provavelmente, o assentamento já havia enfrentado o peso do império antes.
— É melhor irmos o mais rápido possível, Raven disse, sua voz carregada de urgência.
— Mas quero saber tudo sobre a situação de vocês com o império, especialmente sobre aquele brasão nobre nos uniformes dos soldados.
Lytharia assentiu, a expressão séria.
— “Sim, você saberá.”
Com isso, Elric ergueu Thalion, colocando-o sobre o ombro, e os três partiram em direção à vila, como sombras passando pela floresta. A velocidade com que se moviam era impressionante; seus passos eram tão leves e precisos que pareciam quase flutuar entre as árvores e o terreno irregular. Lytharia liderava o grupo, seus olhos afiados encontrando o caminho, enquanto Raven e Elric seguiam lado a lado, formando uma formação triangular perfeita, quase militar.
A floresta mudava continuamente conforme avançavam, cada trecho parecia ter sua própria identidade. A vegetação variava de cor e densidade, e a atmosfera mudava — ora pesada e quase sufocante, ora leve, como uma brisa em campo aberto. Intrigado, Raven quebrou o silêncio.
— Lytharia, antes de responder sobre o império, você pode me explicar por que a floresta parece tão… fragmentada? Não é só a vegetação que muda, é a sensação de cada área. É como se o próprio ar tivesse uma personalidade.
Lytharia, surpreendida pela pergunta, lançou-lhe um olhar rápido enquanto continuava a guiar o grupo.
— Essa floresta é viva, Raven. Ela é tomada por seres mágicos, feras antigas, espíritos e outros que já existiam muito antes de nós. Cada área que cruzamos é um território de uma criatura ou grupo de seres poderosos. A mana deles permeia a terra e molda o ambiente ao redor. Mas não se preocupe — a maioria desses seres não se importa conosco, desde que respeitemos os limites deles.
Raven assentiu, sentindo parte de sua curiosidade satisfeita, mas os olhos ainda brilhavam com um misto de fascínio e ambição. Ele murmurou para si mesmo, mal se dando conta do próprio tom:
— Esses seres antigos… Eu gostaria de enfrentar um deles algum dia.
Elric, que vinha atento a cada palavra, olhou fixamente para Raven, os olhos sérios e a voz baixa mas firme.
— Você é forte, Raven, eu sei. Mas os monstros que habitam essa floresta são além do que qualquer humano consegue imaginar. Os únicos que já chegaram perto de enfrentá-los são a elite da elite… e nem todos saem vivos.
O comentário de Elric pairou no ar, mas Raven não se abalou. Em vez disso, um leve sorriso surgia em seu rosto, um misto de desafio e determinação.
Raven tomou a dianteira, sentindo que havia chegado o momento de desvendar as tensões que pesavam entre eles e o império humano. Ele perguntou aos dois, sem rodeios:
— Me contem mais sobre a situação de vocês com o império. Por que decidiram me atacar no momento em que apareci?
Lytharia soltou o ar lentamente, e sua expressão mesclava ressentimento e melancolia. Suas mãos tremiam ligeiramente, enquanto ela encontrava as palavras.
— Certo… isso vai ser longo, respondeu, o olhar perdido em lembranças amargas.
Ela começou a narrar desde o início, traçando a história das eras e a complexa relação entre as raças. Durante as duas primeiras eras, humanos, elfos e outras raças viviam em harmonia neste continente. A Primeira Era foi marcada pela fundação da Igreja de Hypnodor, o deus do Sono e da Morte, e pela descoberta do ferro, que mudou drasticamente nosso modo de vida. Antes disso, existia a Era Retrógrada, ou Era Zero, onde tudo era incerto e cada raça lutava por sobrevivência básica.
Lytharia fez uma pausa, e uma sombra atravessou seu olhar ao relembrar as práticas obscuras.
— A Igreja de Hypnodor pregava a preservação da vida, apesar do nome que pode parecer sinistro.
— Mas eles… também cometeram atrocidades, justificadas como sacrifícios para seu deus. Crianças de sangue misto eram, muitas vezes, levadas em rituais sangrentos. Foi uma época de fé distorcida.
Enquanto corria, ela retomou a história, passando para a Segunda Era.
— Foi então que surgiram os grandes pilares de cada raça. Humanos, elfos, anões, e até os gigantes, que naqueles dias eram comuns. Essas figuras eram poderosas e sábias, muitos deles vivendo centenas, até milhares de anos. Mas com o tempo, uma força singular começou a emergir…
Ela estreitou os olhos, uma faísca de raiva contida brilhando neles.
— “A Segunda Era marcou a ascensão do Império Humano e de seu líder, o Imperador Roselle. Ele apareceu do nada, vindo de outra dimensão, dizem alguns. Com sua mente brilhante, conquistou rapidamente o trono e trouxe avanços em todas as áreas. Militarmente, politicamente, até na agricultura, ele revolucionou o império. Em pouco tempo, o domínio humano se tornou o centro do mundo, e Roselle passou a ser venerado quase como uma divindade.”
Lytharia fez uma pausa, observando o rosto de Raven, para garantir que ele compreendia a gravidade do que ela dizia.
— “Roselle consolidou o poder dos humanos, mas, ao fazê-lo, isolou outras raças. A paz desfez-se, e agora o império vê qualquer não-humano como ameaça ou recurso.”
Elric, que carregava Thalion e acompanhava a conversa, completou com a voz grave:
— E é por isso que, quando você apareceu, achamos que era um espião. Nosso povo está cada vez mais ameaçado, e a chegada de alguém novo, sem explicação, era motivo suficiente para suspeitar.
Raven ouviu em silêncio, assimilando a história e a angústia contida nas palavras dos elfos. Finalmente, ele assentiu, ciente do peso daquela aliança.
A história continuava, e a cada palavra Lytharia revelava o peso de uma era marcada pela opressão e pela luta pela sobrevivência. Ela continuou, a voz embargada, e seu olhar fixo em Raven, como se desejasse que ele pudesse compreender o quão profunda era a dor e a resistência de seu povo.
— “Durante a Terceira Era,” ela começou, “as guerras começaram de verdade. Os humanos não queriam mais apenas coexistir. Eles queriam poder, território, e conhecimento místico que nunca lhes pertenceu. Roselle e seus sucessores atacaram primeiro os gigantes, buscando o que eles chamavam de ‘Stealt’, um metal raro, dotado de força mágica incrível. Os humanos descobriram que, com ele, poderiam criar armas que conduzem magia. Assim, suas espadas se tornaram capazes de gerar chamas e relâmpagos, e as armaduras se tornaram impenetráveis. Não sei como, mas eles aprenderam a explorar esse metal para dominar a magia, sem a necessidade de um mago para conjurar magias.
Raven franziu o cenho, intrigado. Ele pensou em algo, uma possível conexão com a língua rúnica, mas rapidamente descartou. Aqueles soldados que enfrentou não demonstraram nenhum entendimento básico de magia rúnica.
Lytharia fez uma pausa e retomou o fôlego, enquanto Raven absorvia cada detalhe.
— “Depois, voltaram-se contra os anões,” continuou ela. “Os artesãos mais talentosos, as fêmeas e os arquitetos foram escravizados. Eles queriam o conhecimento dos anões sobre armas e construção. Aqueles que conseguiram fugir vivem hoje em isolamento, sempre perseguidos. A mão dos anões ergueu as muralhas do império, fortificadas com magia e camadas de barreiras. Hoje, seu domínio é quase impenetrável.”
A intensidade na voz de Lytharia aumentou, enquanto os detalhes se tornavam ainda mais sombrios.
— “Nós, elfos, nos refugiamos nesta floresta, Ashmere. Ela recebeu o nome de nosso protetor ancestral, que pereceu há séculos defendendo o território contra a invasão humana. Mas nem mesmo seu sacrifício deteve a ganância deles.”
Lytharia apertou os punhos, e Raven viu em seus olhos a dor de alguém que perdera muitos ao longo dos anos.
— Todos os dias eles avançam, tomam nosso território e levam nosso povo. Aqueles que resistem são massacrados. As vilas que se recusam a cooperar são dizimadas. E aqueles que são capturados… se tornam escravos, objetos sexuais ou experimentos para fortalecer os humanos.
Raven a observava em silêncio, as revelações batendo sobre ele como uma tempestade.
— Eles exploram a madeira elemental de nossa floresta para armas e rituais mágicos. Até mesmo o sangue élfico, refinado em poções, aumenta a vida dos humanos que o consomem.
Os olhos de Lytharia brilharam com lágrimas contidas, enquanto Raven, abalado pelo relato, sentia um misto de raiva e nojo crescer em seu peito. Ele sabia da crueldade humana, mas ouvir sobre a ganância impiedosa que esmagava e destruía tantas vidas era um golpe brutal. Ele suspirou, a voz tensa, e murmurou apenas:
— Sinto muito…
Lytharia balançou a cabeça, os lábios tremendo enquanto tentava esconder a própria dor.
— “Não há por que se desculpar,” ela disse, a voz marcada pela tristeza e uma aceitação amarga. “Você não esteve envolvido. E pela sua reação, sei que você é diferente. Quando nascemos, já vivíamos sob a lâmina dos humanos. Muitos de nós perderam pessoas queridas , é a realidade que nos impuseram. Mas não temos forças para enfrentá-los… ainda não.”
O peso de suas palavras pairou no ar, e ambos continuaram em silêncio, o som dos passos se mesclando ao sussurro da floresta ao redor. Raven, perdido em seus pensamentos, sabia que as respostas para seus questionamentos viriam com o tempo. Ele decidiu que não forçaria Lytharia a reviver mais lembranças dolorosas por enquanto.
A vila, que antes parecia apenas um ponto em meio à floresta, agora tinha um significado muito maior. Raven percebeu que sua
s ações ali não seriam apenas uma luta por si mesmo, mas por um povo que já perdera tanto e vivia à beira da extinção.