O Desejo Depois Da Morte - Capítulo 4
Orgulho de você.
Estava sentado em um conjunto de várias cadeiras acolchoadas, no penúltimo andar do hospital: a ala destinada aos pacientes em coma ou em estado crítico.
Massageou as próprias mãos, tentando acalmar todos os pensamentos negativos que passavam pela cabeça. A quietude do ambiente pesava no ar, enchendo o espaço com um silêncio quase tangível.
Os corredores estavam vazios, longos e desprovidos de qualquer sinal de vida. A ausência de vozes ou movimento tornava tudo mais sufocante, e Hazan sentia-se em um mundo congelado no tempo, esperando por algo que talvez nunca chegasse.
Um velho doutor de cabelos brancos que o jovem conhecia, saiu da última porta do corredor, e o rapaz o encarou, seus olhos se encontrando. Assim que o médico se aproximou, levantou da cadeira, fechando os punhos.
— O que aconteceu? — A preocupação estava estampada no rosto. — Como ela está!?
Antônio sorriu e colocou uma mão no ombro de Hazan, expressando satisfação em sua voz. — Você não ouviu da primeira vez? Ela se recuperou do coma, rapaz.
— Ela… acordou…? — A voz saiu rouca e desacreditada. A mente mergulhou em vários pensamentos.
Por um instante, sentiu seu corpo flutuar, a mesma sensação de estar sonhando.
Era familiar, semelhante àquela que experimentara meio ano atrás, quando suas escolhas precipitadas resultaram na tragédia que assombrava seus pensamentos.
Nessa época, estava afundando em um pesadelo interminável. Você colhe o que planta, e o mundo jogou as consequências de suas ações sob seus ombros. Elas pesavam toneladas.
— Eu verifiquei o estado dela e, no momento, ela está bem. Vamos falar sobre a recuperação após a sua visita. — Antônio começou a dizer, mas antes de terminar, Hazan já estava correndo pelo corredor do hospital em direção à porta.
Correr por aquele corredor o trouxe de volta para o dia em que trouxe sua tia desacordada em suas costas. O sangue que escorria da têmpora da lutadora, manchando seu ombro em uma sensação quente, e a respiração fraca ecoando em seus ouvidos, culminando em uma sensação de despedida.
Reviveu aquele momento, cada detalhe gravado em sua cabeça: as portas se abrindo com um ranger metálico, o som distante de passos apressados, e o zumbido monótono das máquinas de monitoramento. Agora, não estava correndo para salvar, mas para ser salvo.
Ela acordou, ela se recuperou! Porra, eu sabia!
Chegou à extremidade do corredor, parando diante de uma porta de madeira maciça. Ofegante, engoliu em seco e encarou a maçaneta com os olhos brilhando. Levou a mão até a maçaneta, mas hesitou, mordendo o lábio inferior.
— Isso é real mesmo? — murmurou, uma risada nervosa escapando de sua boca.
Segurou a maçaneta e a girou, empurrando a porta para dentro. O cheiro clínico de desinfectante encheu o nariz, a luz brilhante e fria do teto iluminava sua face preocupada.
Um monitor cardíaco estava montado ao lado da cama, sua pulsação sendo marcada por intervalos agudos de som.
Deitada na cama, estava uma mulher na faixa dos 30 anos, coberta pelo lençol de cor azul-céu. Seus cabelos negros, outrora curtos, agora cascavam sobre seus ombros em uma cascata desgrenhada.
Apesar da palidez que marcava sua pele e da fragilidade que a envolvia, os traços de seu rosto traziam uma beleza delicada. A etiqueta pendurada em suas vestes de paciente trazia o seu primeiro nome: Rafaela.
O jovem a observou por um momento, sentindo um aperto forte no peito. Tirou o casaco e o pendurou no cabide perto da porta.
Chegou à beira da cama, segurando a mão da mulher, tomando cuidado para não apertar forte demais.
— Tanta coisa mudou na sua ausência. Eu tentei, juro que tentei. As coisas não pararam de dar errado, mas eu me mantive forte, como disse que faria — sussurrou, suas palavras naquele momento eram preces destinada apenas aos ouvidos dela. — Sinto tanto a sua falta. Eu… eu cometi tantos erros… — Mudou a expressão, tornando-se determinado. — Mas por você eu faria tudo de novo.
O silêncio da sala parecia ecoar com suas palavras não ditas, com as emoções que transbordavam em cada canto. O rapaz ficou de joelhos, acariciando a mão de sua tia com o polegar e descansando o rosto na beirada da cama.
— Está atrasado — sussurrou uma voz fraca.
No instante em que aquela voz rígida se fez presente, Hazan ergueu a cabeça, fitando Rafaela sentada na cama. Foi atingido por um choque, dissipando qualquer sombra de dúvida: aquilo não era um sonho.
Um misto de emoções intensas o inundou, uma enxurrada de sentimentos que não conseguiu conter.
Sem pensar duas vezes, se lançou em um abraço forte e profundo. Rafaela arregalou os olhos.
Aquela demonstração de afeto não era um traço comum em seu sobrinho.
A perplexidade em seu rosto logo cedeu espaço a um sorriso caloroso e acolhedor, e apesar de relutante, retribuiu o abraço com igual intensidade.
Ali permaneceram, perdidos no tempo, Hazan buscando absorver cada pedacinho daquele abraço, cada fragmento da sensação acolhedora que há tanto tempo estava ausente de sua vida.
Após o que pareceram minutos eternos, Hazan se afastou um pouco, embora desajeitado, um rubor suave pintando suas bochechas. Coçou a bochecha e desviou o olhar. — Foi mal, eu… Só estava com saudade.
— Você está fedendo a suor… e a sopa? — Observou Rafaela, franzindo as sobrancelhas. — Sua estimada tia acorda de um coma e sequer toma um banho antes de visitá-la?
— Espera, é sério? — respondeu, cheirando as axilas. — Ugh…
— Bom, não se preocupe tanto. — Um sorriso provocador surgiu de canto. — A menos que vá sair com uma garota hoje.
Hazan negou com a cabeça. — De onde tirou isso?
— Intuição feminina. — Retrucou, ainda sorrindo, apontando para o rosto de seu sobrinho. — E as marcas de batom pelo seu pescoço e bochecha.
— Espera, merda, isso não é o que parece! — respondeu, limpando as manchas com as mãos.
Rafaela cerrou o punho e o atingiu com um cascudo.
— Ei, sua velha! Tomei de graça? — reclamou, colocando uma das mãos na cabeça.
— Idiota, isso não é um problema.
— O que está dizendo do nada, sua lunática!? Isso é a síndrome da meia-idade ou o quê?
Outro cascudo o atingiu.
— Estou te dizendo isso porque sei o quanto dói perceber que o passado não pode ser mudado. Viva de modo que, um dia, não precise olhar para trás com remorso.
Arrependimento. Aquele impulso de querer reverter o passado. Hazan aprendeu o que era carregar esse fardo ainda na infância. No entanto, quando sua tia entrou em coma, o sentimento de culpa que já o perseguia se intensificou, o afogando em pensamentos de impotência.
Quantas vezes imaginou esse momento? Quantas noites, após as lutas infernais, desejou que sua tia acordasse, apenas para poder dizer o quanto tinha errado? Mas agora, com ela ali, acordada, as palavras ficaram presas na garganta.
Como poderia explicar que, enquanto ela lutava pela própria vida, ele escolheu o caminho mais sujo? Escolheu derramar sangue, e lucrar com a violência.
— Hã? Pft, isso é definitivamente síndrome da meia-idade… — Hazan comentou, desviando o olhar e buscando manter o foco no presente.
O sorriso sutil de Rafaela cresceu. Arrumou uma mecha de cabelo atrás da orelha e então direcionou seu olhar para a janela, que agora refletia a noite estrelada lá fora. As luzes coloridas do tráfego dançavam na escuridão.
— Deixe-me vê-lo de perto. — Se acomodou na cama, indicando para que ele se sentasse ao seu lado. Ele obedeceu, embora estivesse tenso. — Você mudou bastante, por um momento achei que um estranho estava me abraçando. — Rafaela passou os dedos pelos cabelos de Hazan, arrumando os fios bagunçados. — Você sabe, nunca que aquele meu sobrinho gentil e delgado se pareceria com o homem que está na minha frente agora.
Como reação, uma risada curta escapou de Hazan, e Rafaela manteve o semblante sereno.
— E a luta contra o campeão?
— Eu perdi. Eu tentei, mas ele era incrivelmente forte. — Hazan não parecia triste por sua derrota. Seu olhar estava centrado, pois emanava a certeza de que ganharia caso lutasse novamente.
— Eu imaginei. Ele tinha mais experiência e estava mais em forma do que você.
— Quê? Então por que me deixou lutar se sabia que eu não estava pronto? — Encarou a sua tia, sua face confusa e curiosa.
— Porque algumas lutas não esperam até estarmos prontos. Às vezes, elas aparecem sem aviso, e você precisa dar o seu melhor, como se a derrota não fosse uma opção.
— E foi isso o que fiz.
— Isso é tudo o que importa — Rafaela respondeu com um sorriso, dando alguns tapas nas costas de seu sobrinho. — Continuou lutando?
— Não, anunciei uma pausa temporária para mídia, pelo menos até você se recuperar. — Apoiou uma das mãos no pescoço, engolindo seco. — Além disso, não tive muito tempo para treinar sozinho…
— Humpf, se deseja aquele cinturão, deveria ter continuado sem mim — retrucou, cruzando os braços. — Onde está a disciplina que eu ensinei?
— Sei lá, eu… Não ia conseguir treinar sem pensar em você.
Rafaela, que até então parecia irritada, suavizou suas expressões de maneira sutil.— Hum, ao menos reconheceu os seus limites.
— Eaí, tá com fome?
— Não, estou bem.
— Nem sede?
— Não, não estou. — Ela negou com a cabeça.
— Uau, tá exigente hoje. — Ele ergueu as sobrancelhas.
— Estou bem, Hazan. O campeão não para de treinar. Ele está ficando mais forte a cada dia. E tem outros competidores tentando superá-lo também. Você acha que vai conseguir alcançá-los depois de tanto tempo parado?
Um sorriso desenhou os lábios do jovem. — Com a melhor mestra do mundo ao meu lado? Com certeza!
O olhar observador de Rafaela percorreu seu sobrinho, como se quisesse decifrar cada mudança em sua essência. — Você mudou mesmo.
Com um gesto cuidadoso da mão, ela interrompeu qualquer tentativa de resposta por parte dele.
— Durante muito tempo, eu vivi com o medo de que você estivesse sacrificando a parte fundamental da sua vida por puro arrependimento. — Ela segurou a mão dele. — Sem infância, sem amigos, sem aproveitar sua vida escolar… E em um país nada parecido com o Brasil. Você treinava, treinava e treinava. Entenda, como sua tia, não, como sua família, minha intenção era apoiar seu sonho da melhor maneira que podia, mas, em diversos momentos, eu me questionava se isso era o certo a ser feito.
— Tia, eu…
Mais uma vez, Rafaela o impediu com um gesto sutil da mão.
— O passado fica no passado — Rafaela falou, a voz firme, porém, com um toque de melancolia. — Os anos passaram, e você se tornou muito maior do que eu imaginava. Mesmo sem o talento que muitos almejam, trilhou o seu próprio caminho. Aprendeu novas artes marciais sozinho, e conquistou medalhas em competições de vários países. Quando me dei conta, você já estava surpreendendo o mundo.
Os olhos dela, tão acostumados a esconder emoções, se suavizaram ao encontrar os de Hazan. O sorriso, breve e nostálgico, logo se desfez. — Mas… foi tarde demais que percebi a verdade. Você se deixou consumir por essa busca. Ficou obcecado. Em algum ponto, se perdeu.
Rafaela nunca fora de palavras. Seu carinho sempre esteve em gestos silenciosos — um prato de comida deixado no canto logo após um treino árduo, uma bandagem enrolada nas mãos de maneira gentil, o uso de kits médicos para tratar as feridas. E, por isso, vê-la abrir o coração assim, desarmada, era mais inquietante do que qualquer golpe que Hazan já havia sofrido no ringue.
Ele manteve o silêncio.
— Então, não se culpe pelo que aconteceu comigo. Eu protegi o nosso lar. — A mão dela, frágil, apertou a dele. — A responsabilidade foi sempre minha em primeiro lugar. Mas… — Seus olhos, antes duros, agora tinham um brilho de orgulho contido. — Vejo algo diferente em você agora. A obsessão que antes consumia seus olhos… desapareceu. Não sei o que você enfrentou durante meu coma, querido, mas preciso que me prometa uma coisa.
Hazan abaixou a cabeça, os olhos fixos no chão. Em outros tempos, teria discutido, refutado as palavras de Rafaela com teimosia. Mas agora? Tinha se acostumado a lidar com a verdade. Não adiantava brigar com os fatos. Ergueu o olhar, encarando a tia.
— Qualquer coisa que você pedir.
Rafaela assentiu. — Se eu vou continuar te apoiando nesse caminho… quero que, pelo menos, seja honesto consigo mesmo. Você busca esse título pela sua mãe, ou é realmente isso que você quer?
O silêncio pairou pesado entre eles.
— Vamos, Hazan!
— Isso… isso não depende de mim, Rafaela… — As mãos agarraram os ombros dela, trêmulas. — Escuta, você é a única família que me restou, e eu repeti o mesmo erro!
O tremor em suas mãos não passou despercebido por Rafaela. Sentiu a tensão nos dedos de seu sobrinho, como se a segurar fosse a única coisa o mantendo de pé.
— Acha que eu não sei o que eu fiz durante todo esse tempo? — Prosseguiu, a voz quebrada, rouca e hesitante. — Isso nunca foi por mim. Nunca. Eu odiava lutar. Odiava o gosto do sangue na boca, odiava causar ou sentir dor… e, a cada treino, a cada golpe, eu me convencia mais e mais de que isso não era pra mim. — Seus olhos se arregalaram. — Mas o que eu podia fazer? Era o único jeito de ser perdoado.
Rafaela observou seu sobrinho, a expressão dele distorcida pela dor e o amargor de uma confissão sufocada por anos. Compreendia que, agora, o silêncio seria mais poderoso que qualquer palavra.
Hazan respirou fundo. A voz vacilou, e então prosseguiu. — Mas… toda vez que eu pensava em desistir, em viver por mim mesmo, algo apertava meu peito. Sentia como se estivesse me afogando, e… eu percebi que… — A voz fraquejou, e ele se calou por um instante, por conta da falta de ar. — Eu percebi que eu não sabia mais o que eu era sem isso.
Antes que suas emoções se explodissem de uma vez, fechou os olhos e respirou fundo, sentindo a cabeça formigar, ficando dormente. Aquilo o desligou do que o atormentava.
— Não importa mais. Eu só queria que você acordasse. Queria te ver de novo, mas agora que está aqui… não sei o que dizer. Tudo que fiz foi errado. Eu fiquei obcecado e você pagou o preço. Foi como quando minha mãe morreu, eu sabia que não estava ajudando o suficiente, mas não fiz nada. E agora… aqui estamos de novo. Eu falhei com você, falhei com ela. Eu só queria… eu só queria ter feito diferente. Senti tanto a sua falta…
— Então nós vamos descobrir. Vamos descobrir quem é você e o que quer fazer, seja se tornar um campeão ou qualquer outra coisa. Assim que eu me recuperar, vamos voltar aos treinos. — Rafaela segurou as mãos de Hazan e o puxou para um abraço. — Tenho tanto orgulho de você.
Hazan retribuiu o abraço, os olhos tremendo e crispando com força. — Não vamos treinar até eu ter certeza de que você está bem. Sua saúde vale mais do que qualquer título.
— Tudo bem, Hazan. Eu já entendi.
Sinto que ele ainda não me contou tudo… Talvez eu deva contá-lo a verdade. Que não sou a tia incrível e a pessoa impecável de que ele se orgulha tanto. Quem sabe isso não o encoraje a fazer o mesmo.
Toc! Toc!
A porta da sala se abriu, com Antônio entrando na sala.
— Com licença, boa noite! Opa, parece que interrompi algo importante — disse o médico, contente com a cena à frente de seus olhos. — O horário da visita acabou, Hazan. — O doutor Antônio encarou Rafaela, caminhando em sua direção. — Senhora Rafaela? Está na hora do seu check-up.
Certo… Sempre haverá uma próxima vez. Vou me certificar de que ele saiba o verdadeiro motivo de ter não ter se tornado um campeão.
❧ ⚜ ❧ ⚜ ❧
No banheiro do hospital, o reflexo transmitia uma face de pura tormenta. Hazan se apoiou na pia, sentindo o frio mármore sob suas mãos, uma sensação que parecia se estender até o fundo de sua alma.
O espelho devolvia a imagem de um estranho. Não era Hazan quem o encarava de volta, mas uma versão distorcida, esgotada, irreconhecível. O mármore frio sob suas mãos parecia querer puxá-lo para a realidade.
Um suspiro desesperado escapou de seus lábios, uma rendição dolorosa à turbulência que o invadia.
Seus olhos eram agora poços sombrios de autojulgamento.
O estômago embrulhou, uma resposta fisiológica do próprio corpo em relação ao nojo que sentia por si mesmo.
Uma careta de aversão se formou em seu rosto, e não pôde evitar um som involuntário de repugnância.
Courgh!
Ofegante, girou a torneira, deixando a água fresca limpar o vômito da pia. Juntou um pouco de água com as mãos trêmulas e limpou o rosto. Uma pífia tentativa de lavar a culpa que o corroía por dentro. Mas isso não era possível.
Novamente, se encontrou encarando o espelho. Estava apático, um semblante cansado, o brilho de seus olhos extinguidos.
— Seu mentiroso do caralho… — murmurou, palavras cheias de desgosto e autocondenação. A voz baixa ecoava pelo banheiro, os próprios azulejos pareciam absorver a intensidade de suas emoções. — Ela queria sinceridade, e o que você fez? Mentiu! Seu maldito hipócrita! — O grito reverberou nas paredes. — Depois de todos os crimes que cometeu, todos os sonhos que arrancou, acha que tem direito de desejar alguma coisa!? Você não vai poder esconder o que fez pra sempre, Hazan…
Mordeu o canto do lábio, deixando o sangue quente escorrer pelo canto da boca.
Com um movimento brusco, abriu sua mochila, mostrando uma pasta embrulhada. Seus dedos trêmulos desembrulharam o conteúdo. Era um documento com cerca de 20 páginas de pura informação.
A pasta parecia mais pesada em suas mãos do que jamais fora.
Todas as informações sobre o túmulo estão aqui. Não tenho provas, mas sei nomes importantes, lugares, métodos de operação… Esses detalhes devem ser o suficiente pra motivar uma investigação. Precisam ser o suficiente.
Enrugou a testa enquanto encarava a pasta.
Por um momento, imaginou como seria se entregar. As atrocidades cometidas por um conglomerado que aparenta ser justo para seu país, e o peso de seus crimes sendo expostos ao mundo. Seria libertador… ou seria sua ruína? Mas a imagem de Rafaela acamada o puxou de volta para o presente. Ainda não podia se dar ao luxo de cair. Não agora. Não enquanto ela ainda precisava dele.
Com os olhos embaçados, fechou a pasta e a guardou na mochila.
Respirou fundo, tentando encontrar algum tipo de clareza no meio do caos emocional que o consumia.
Por agora, vou dar um jeito de entregar esses documentos à polícia de forma anônima.
❧ ⚜ ❧ ⚜ ❧
As estrelas desenhavam suas danças no céu, resplandecendo em uma exibição cintilante que enfeitava aquela noite.
Após conseguir entregar o documento para a polícia de maneira discreta, decidiu ir para casa e descansar. Agora que tinha perdido o emprego na parte da tarde, precisava procurar por outro trabalho que o ajudasse a pagar suas dívidas.
Ao dobrar a esquina, Hazan alcançou a rua que chamava de lar. Nos recantos mais remotos dos subúrbios de Bangkok, no fim de um beco, estava uma garagem protegida por uma porta de enrolar.
Ambos os lados daquela rua estavam tomados por prédios de condomínios extremamente baratos, claro que era por conta do tamanho dos quartos, reduzidos a cubículos no qual apenas os mais pobres se sujeitariam a viver caso não quisessem morar na rua.
O edifício exibia a aparência discreta de uma modesta moradia de dois andares, construída com madeira escura.
Uma placa de madeira pendia acima da entrada, gravada com a inscrição “Muay Thai School”, as letras robustas e brancas contrastando com o fundo.
— Ei, ô Hazan! — Uma voz rouca o chamou.
Hazan olhou para os lados, mas ninguém estava visível. Só quando direcionou seu olhar para o alto, percebeu seu vizinho do segundo andar acenando entusiasmado. — E aí, rapaz! Como vai você e sua tia?
Era um homem idoso, com a pele marcada pela idade, cabelos grisalhos e uma barba rala. Em sua mão, uma lata de cerveja brilhava sob a luz da lua.
Hazan levantou o queixo em resposta e acenou de volta. — Estamos indo bem, senhor Narong. — Um sorriso adornou o rosto do rapaz. — Minha tia acordou do coma!
— Que notícia espetacular! — Ele virou-se com um grito exuberante em direção à sua esposa. — Kanya, vem cá! Rafaela acordou do coma! Pode acreditar nisso?
— Chai yo! Diga ao Hazan para aparecer aqui amanhã de manhã. Eu vou preparar um buquê de orquídeas para ele levar para ela!
Narong voltou sua atenção para Hazan, seu rosto irradiando alegria. — Você ouviu, não ouviu?
Hazan concordou. — Claro, com certeza passarei aí.
— Ah, a propósito, rapaz, como vai o conserto do meu rádio? Você disse que levaria menos de dois dias, hein? — Narong provocou, com um brilho travesso nos olhos. — Não está tentando me enrolar, está?
Hazan esfregou o queixo, fingindo perplexidade. — Rádio? Não faço ideia do que está falando… — Ele riu, coçando a cabeça com um sorriso arrependido. — Devo entregá-lo amanhã, me desculpe pela demora. Eu tenho estado bastante atarefado ultimamente…
— Haha, é melhor que seja verdade, senão vou chamar a polícia! — Narong brincou.
Hazan virou-se com um aceno, balançando as mãos em um gesto de despedida. — Isso seria um desastre!
Tirou um molho de chaves do bolso e destrancou um robusto cadeado que prendia a porta de enrolar em um gancho no chão. Com um guincho de engrenagens, o cadeado destrancou. Ergueu a porta até o topo, revelando uma porta dupla de madeira.
Tentou destrancar a porta, mas para sua surpresa, já estava aberta. Encarou a fresta da porta entreaberta por alguns segundos, pensativo.
Preciso trocar essa maldita fechadura.
Deu de ombros e a abriu de uma vez, apenas para se arrepender.
Foi recebido por uma cortina de poeira. Uma tosse involuntária e descontrolada escapou de seus pulmões.
— Cof! Cof! Porcaria, esse lugar precisa de uma limpeza! — praguejou, sacudindo a mão para afastar o pó.
Estava de volta à academia, seu santuário pessoal e sua casa. O primeiro andar abrigava os ringues de treinamento, e o segundo era reservado para os cômodos da moradia.
Ligou o interruptor que estava ao lado da porta, acendendo as luzes do lugar.
Embora fosse uma academia de Muay Thai, a última vez em que viu uma grande movimentação de lutadores foi quando ainda era uma criança. Com o tempo, os alunos foram sumindo, restando apenas ele e sua tia.
No coração da academia, um pequeno corredor se formava, ladeado por dois ringues paralelos.
Virando à esquerda, seus olhos se fixaram em um grande armário com uma placa de vidro. O vidro empoeirado não conseguia esconder a grandeza que residia ali dentro: uma coleção de troféus e medalhas de ouro e prata.
Aquilo era a representação das conquistas de sua tia, Rafaela, no mundo do Muay Thai. Aquelas peças reluzentes contavam a história de uma mulher brasileira que se tornou uma lenda no esporte feminino. A quantidade de prêmios era tão avassaladora que pareciam quase não caber no armário.
Hazan se aproximou do vidro, observando cada troféu com um olhar nostálgico. Traçou os dedos pela superfície empoeirada, seus olhos se detendo em um retrato no canto do armário.
Abriu o armário e pegou o retrato, assoprando a poeira e olhando a foto.
A foto capturava um momento antigo: Rafaela em uma fase jovem e de cabelos curtos, dentro do ringue, com o cinturão de campeã erguido para cima em um gesto de vitória.
Observando os detalhes da foto, um suspiro escapou dos lábios de Hazan. — Eu queria ser tão bom quanto você — sussurrou, uma mistura de frustração e respeito.
Recolocou o retrato em seu lugar no armário. Passou pelos ringues, adentrando uma varanda que tinha se transformado em um espaço de treinamento.
O chão estava coberto por um tatame azul gasto, e sacos de pancadas pesados balançavam em todos os cantos. Entre eles, um se destacava por sua aparência surrada e velha. Camadas e mais camadas de fita adesiva marcavam os inúmeros consertos feitos ao longo dos anos, sempre que o couro era dilacerado.
Era o mesmo saco de pancadas que Hazan usava desde a infância, quando era apenas uma criança atormentada.
A cada passo na direção do saco, podia enxergar o seu eu mais novo socando o objeto de forma desajeitada, ansioso para provar seu próprio valor.
Como se buscasse uma afirmação para seu crescimento, se aproximou daquele objeto familiar. Abriu um espaço diagonal entre as pernas, com a perna direita à frente.
Elevou os punhos até a altura do rosto, flexionou as pernas, tensionou os músculos abdominais e girou a cintura, transferindo todo o peso para o ombro que, por fim, se esticou em um direto poderoso.
Bam!
O soco atingiu o saco de pancadas com tanta força que voou em direção ao teto da varanda. Hazan observou o resultado, e satisfeito, acenou com a cabeça antes de se virar, seguindo em direção a uma escadaria no centro da varanda.
Tirou seu par de tênis e as meias, e subiu os degraus em passos silenciosos, cercado pelas paredes estreitas e escuras que levavam ao segundo andar. O espaço era apertado, mas carregava o peso de sua história. Medalhas de bronze, prata e algumas raras de ouro pendiam nas paredes, acompanhadas de certificações de artes marciais que mapeavam sua trajetória: jiu-jitsu, muay-thai, boxe, wrestling, dentre outras. Cada uma representava horas de suor, dor e persistência.
Rafaela sempre insistira que aquela escadaria fosse um memorial de suas conquistas, uma lembrança constante de que seu esforço nunca era em vão. Mas, para Hazan, as paredes pareciam mais um arquivo de batalhas travadas contra sua própria falta de talento.
“Eu tentei de tudo… embora não fosse bom em nada” Ao alcançar o topo, espreguiçou-se, sacudindo o peso do passado. “Vou preparar algo pra comer e treinar um pouco antes de dormir.”
Hazan se deparou com um corredor. À direita, a cozinha, uma copa aberta que fazia fronteira com o quarto de sua tia. À esquerda, o banheiro e seu próprio quarto, localizado no final do corredor.
Ao abrir a porta do quarto, lançou um olhar atento ao seu redor. Tudo estava como havia deixado quando partiu.
A cama estava arrumada junto à janela, uma escrivaninha carregada de livros de artes marciais empilhados dominava uma parte do cômodo. Um desses livros estava aberto, com trechos sublinhados em amarelo destacando tópicos essenciais.
No canto da escrivaninha, estava uma antiga TV, com entrada para fitas VHS. Ela estava ligada, pausada num momento histórico da história do boxe.
Hazan apertou o botão, assistindo o final do vídeo.
Em 1964, Muhammad Ali enfrentou temido Sonny Liston pelo título mundial dos pesos pesados. Ali surpreendeu a todos com sua agilidade e movimento no ringue, esquivando-se de 23 socos consecutivos de Liston. Ele acabou vencendo a luta por nocaute técnico no sétimo round, tornando-se campeão mundial pela primeira vez e solidificando sua posição como uma lenda do boxe.
Nunca me canso de assistir isso. Ali, você foi o melhor, isso é indiscutível.
Halteres de 30 kg descansavam ao lado da escrivaninha. No canto oposto, uma barra fixa com suportes aguardava seu uso. No centro do quarto, um rádio antigo permanecia aberto, esperando reparos, um canivete ao seu lado.
Melhor eu fazer isso logo, qualquer dinheiro é bem-vindo agora. Agora que ela acordou, vou precisar de outro emprego se quiser manter tudo em ordem.
Pegou o canivete e o guardou no bolso de trás da calça.
Atrás da porta do quarto, um suporte com vários cabides de madeira estava fixado. Com um gesto automático, pendurou sua mochila e casaco ali, como se aquele pequeno ato trouxesse uma sensação de paz e pertencimento.
Crack!
Um barulho de vidro estilhaçando ecoou pela cozinha. Hazan olhou na direção do corredor, franzindo as sobrancelhas.
Esqueci de fechar a janela? Se for outro maldito macaco, eu juro que…
Aquele bairro ficava próximo de um parque que tinha uma floresta imensa, e por conta disso, era normal alguns macacos aparecerem às vezes, buscando comida. Isso acontecia por conta do hábito de alguns moradores em alimentar esses animais.
Andou até a cozinha, se deparando com um prato de vidro quebrado no chão, e a janela aberta. Mas sem sinal de nenhum animal.
Colocou a mão no pescoço e soltou um suspiro cansado. O som distante do vento entrando pela janela parecia insignificante comparado ao cansaço que pesava em seus ombros.
Bam!
O golpe ecoou pela sala, e Hazan foi lançado para frente, caindo sobre o balcão da cozinha. Uma garrafa de vinho vazia, que estava ali, tombou e rolou pelo chão. Seu corpo, treinado para reagir em situações de dor extrema, o forçou a lutar contra a inconsciência.
Os dedos de Hazan apertaram o granito do balcão com força, as articulações das mãos brancas, buscando se equilibrar. Sentiu o gosto de sangue na boca, que escorria de um corte nos lábios, mas ignorou a dor. Suas pernas cambaleavam, mas as forçou a se firmar.
— Esse desgraçado continua consciente? — rosnou um homem de cabelos grisalhos, de tatuagem no pescoço e terno. Estava surpreso ao ver Hazan se levantar, um rastro de sangue pingando no chão de azulejo.
Hazan rangeu os dentes e correu contra o homem. Fingiu um soco, e ergueu a perna, desferindo um chute frontal.
O impacto foi direto no peitoral do agressor, que perdeu o equilíbrio e colidiu com uma prateleira cheia de panelas penduradas.
Bam!
Antes que Hazan pudesse reagir, o som pesado de metal cortando o ar invadiu seus ouvidos. Reagiu, protegendo seu flanco com o cotovelo, e girou o corpo em um soco que atingiu alguma coisa com as costas da mão. Sua defesa não foi tão útil contra uma barra de ferro.
Seu corpo bateu contra o armário da cozinha, e um conjunto de copos de vidro que estavam no balcão caiu ao chão, se despedaçando ao seu redor.
O lutador arquejou, o ar escapando de seus pulmões em um grunhido de dor. A nuca ainda latejava pela pancada anterior. Sua visão embaçou por um instante, o mundo ao redor girando, mas ele resistiu, os olhos focados no agressor à sua frente.
O chão de azulejo frio parecia afundar sob os pés de Hazan. Suas pernas tremiam, e não conseguia mais manter o equilíbrio. A barra de ferro brilhou novamente no canto de sua visão.
Crack!
O segundo golpe, agora contra a lateral de sua cabeça, fez o mundo ao redor se desfazer em sombras. Hazan caiu sobre os cacos de vidro no chão.
— O garoto é durão mesmo — disse o homem de cabelos brancos, limpando o sangue do nariz. — Esse maldito me acertou quando nem sabia onde eu estava, que sortudo…
— Tsc, melhor irmos embora, — o outro mafioso bufou, chutando um dos copos quebrados para longe. — Temos sorte da rua estar deserta, mas não podemos arriscar ficar aqui muito tempo.
Enquanto o segundo homem começava a arrastar Hazan, o líder ergueu a mão, indicando que ele parasse.
— Espere aí — ordenou, notando um volume no bolso de trás das calças do lutador. — Tem algo errado. Reviste ele.
O homem vasculhou os bolsos do rapaz inconsciente e, ao chegar no bolso traseiro, encontrou um pequeno canivete dobrado.
— E olha só o que temos aqui. — Ele ergueu o objeto para o líder, cuja expressão permanecia pensativa.
Esse garoto, se tivesse puxado o canivete desde o início, as coisas ficariam um pouco complicadas… Por que ele não fez isso?
Um estalo de língua expressou a indignação. — Devolva-o.
O subordinado ficou atônito com a ordem. — Deixar isso com ele não me parece uma boa ideia. Você viu o que ele fez, e… e tem os rumores sobre o que ele fez no túmulo…
— Ei! — O líder interrompeu, com um sorriso cheio de escárnio. — Você está me dizendo que um garoto com um canivete seria perigoso para um grupo de mercenários experientes e armados? É isso o que está me dizendo?
— N-não, senhor, é só…
— Então coloque a droga do canivete no mesmo lugar. — Sua voz cortou como uma faca.
O subordinado hesitou, mas acabou obedecendo, devolvendo o canivete ao bolso de Hazan.
— Agora leve-o para a limusine. — O líder voltou-se, ajeitando o terno, sem olhar para trás.
O segundo homem, ainda atônito, balançou a cabeça e começou a arrastar Hazan pelo chão, seu corpo sem vida pesando como chumbo. Os cacos de vidro se espalhavam conforme ele era arrastado, rangendo sob os sapatos dos capangas.
— É uma pena, se tivéssemos mais tempo, eu adoraria surrar você, garoto! — murmurou o homem mais velho, com um sorriso cínico, enquanto deixavam a cena para trás.