O Desejo Depois Da Morte - Capítulo 6
Depois da Morte
Em um canto sombrio de um parque, encontrava-se um garoto de cabelos castanhos escuros e olhos que cintilavam em tons de laranja. Seus olhos, porém, revelavam uma angústia profunda, pois estava aprisionado em seus próprios pensamentos. Em volta de seu pescoço, um cordão exuberante pendia, que era segurado com força.
O parque do orfanato “Raio de Sol” costumava ser um refúgio acolhedor para a maioria das crianças. Mesmo que os brinquedos de madeira estivessem desgastados pelo tempo, e a pintura das paredes quase desaparecendo, aquele lugar era o cenário de risos e brincadeiras infantis todos os dias.
Menos para Hazan. Sua atitude solitária não passou despercebida por um trio de crianças mais velhas. Naquela ocasião, o que mais chamou a atenção deles foi o objeto incomum que ele segurava.
— O chorão está se escondendo aqui de novo? Por que você não brinca com a gente, hein, Hazinho? — provocou uma garota, o sorriso maldoso em seu rosto.
O garoto permaneceu sentado no chão, com a palma da mão aberta, fixando seu olhar no cordão que segurava.
— Ei, não ouviu o que ela disse? — disse um garoto, puxando os cabelos de Hazan.
O menino continuou a fitar o cordão.
Um terceiro garoto, por sua vez, aproximou-se e arrancou o cordão do pescoço de Hazan, arrebentando o objeto.
— Olhem só, uma folha de carvalho no meio, igual ao sobrenome dele! — zombou ele com um sorriso. — Deve ter sido um presentinho da mamãe, não é? Ouvi dizer que ela era uma vadia que tentava seduzir os médicos e até conseguiu atrasar o pagamento do hospital por meses! Não adiantou muito, né!? Já que ela tá mort-
Bam!
Um estrondo ressoou no ar quando o punho de Hazan encontrou em cheio o nariz da criança, que desabou no chão. Hazan lançou-se sobre ele, lágrimas nos olhos, e desferiu uma série de golpes sem piedade.
As crianças assistiram em choque, paralisados diante da cena. O valentão tentou se defender, mas Hazan não deu espaço para isso.
Hazan ergueu o olhar, encarando-os, enquanto o garoto jazia inconsciente, sangue escapando de seu nariz.
— Isso é divertido? — Cerrou os punhos, o olhar vazio tomado por uma raiva crescente. — Humilhar os outros… é divertido? Acho que vou descobrir!
As crianças começaram a recuar, quando outros dois meninos seguraram Hazan por trás. Um deles o empurrou, e irritado, Hazan virou com um soco em sua boca. As crianças, que recuaram, voltaram a ganhar confiança por conta da vantagem numérica, e uma briga de um contra quatro se iniciou.
❧ ⚜ ❧ ⚜ ❧
Uma mulher de beleza deslumbrante deslizou sua motocicleta Harley até parar diante de um orfanato. Removeu o capacete, revelando cabelos curtos que roçavam seus ombros.
Vestindo uma camiseta branca que demonstrava o seu abdômen definido e uma jaqueta de couro preto, combinando com calças escuras e botas de cadarço, ela emanava um magnetismo irresistível.
Ao adentrar o orfanato, com uma pasta de documentos em mãos, sua presença causou espanto entre funcionários e crianças, que a observaram admirados. Não era comum a presença de alguém tão diferente naquele lugar tão remoto.
Dirigindo-se à recepção com passos decididos, ela solicitou informações sobre a guarda de um garoto cuja mãe tinha falecido a cerca de mais de um ano. A recepcionista, ainda atônita com a aparição da mulher, fez questão de confirmar a veracidade dos documentos que lhe foram entregues.
— C-certo… Rafaela Santos, 25 anos, aposentada…— gaguejou a recepcionista, seus dedos nervosos conferindo as informações na tela do computador da recepção — Veio buscar o Hazan Carvalho, n-não é? Vou levá-la até ele, mas… Ele está um pouco sensível hoje, acabou brigando com algumas crianças…
— Pode me dizer o motivo da briga? — A voz firme de Rafaela cortou o silêncio, séria e direta.
A recepcionista hesitou, lançando um olhar incômodo para o corredor vazio ao lado. — As crianças disseram que… que ele bateu primeiro. Hazan costumava ser um garotinho tão calmo e gentil. Mas desde que a mãe faleceu… ele mudou. Agora, evita todo mundo, não conversa com ninguém e…
— Vocês tentaram ouvir o que ele tem a dizer? — Rafaela a interrompeu, o tom controlado, mas os olhos atentos, avaliando cada reação da recepcionista.
Pegando-a de surpresa, a recepcionista piscou, desconcertada. — Tentamos, sim, mas ele… ele não fala com a gente e nem com as crianças. Só se afasta, e essas brigas tem se tornado cada vez mais frequentes… — Ela deu de ombros, uma ponta de frustração escapando. — Fora isso, ele não causa muitos problemas. Está sempre carregando aquele cordão para um lado e para o outro ou lendo livros na biblioteca.
Rafaela franziu o cenho, intrigada. — Um cordão?
— É um presente da mãe. A única coisa que ainda tem dela. — A recepcionista forçou um sorriso, mas soava distante, como quem diz algo óbvio. — Ele agarra aquilo como se o mundo dependesse disso. Coitado…
Rafaela manteve o tom calmo, embora seus olhos demonstrassem firmeza. — Até agora, esse garoto não tinha ninguém. E, para quem está sozinho, até um simples cordão pode significar tudo. Perder a mãe tão novo… Ele pode agir de maneiras que não parecem lógicas, mas isso não significa que suas ações não têm um motivo. Ignorar o que ele sente, ou partir para conclusões sem tentar compreendê-lo, é uma postura que não ajuda.
A recepcionista abriu a boca, mas não encontrou palavras. Por um segundo, ela desviou o olhar, mordendo o lábio, buscando compreender o que Rafaela dissera — e talvez já soubesse que ela estava certa.
Por fim, se levantou, esfregou os braços e exibiu um sorriso sem graça. — Bem… — sua voz saiu apressada. — Vou levá-la até ele, se me acompanhar.
Rafaela assentiu, mas a seriedade em seu rosto não diminuiu.
❧ ⚜ ❧ ⚜ ❧
O quarto do orfanato, com suas paredes desbotadas e o vidro das janelas embaçado pela umidade, era o refúgio silencioso onde Hazan tentava sufocar a dor que parecia lhe apertar o peito mais a cada dia.
Um ano se passou desde o último dia que viu sua mãe, mas o peso em sua consciência era tão sufocante quanto naquele aniversário fatídico. Em suas mãos pequenas e trêmulas, segurava o cordão partido. As lágrimas escorriam em silêncio.
Toc, Toc!
Sobressaltou ao notar as batidas na porta, limpando as lágrimas e colocando o cordão na escrivaninha. Para disfarçar, abriu as janelas e fingiu olhar para o lado de fora, onde se encontrava um jardim.
— Hazan, querido? Tem alguém que deseja vê-lo. Vamos entrar, está bem? — murmurou uma voz abafada.
A porta rangeu ao se abrir, revelando as duas figuras. Rafaela entrou no quarto, acompanhada pela funcionária do orfanato.
— Como vai, garotinho? — A funcionária sorriu. — Quero que você conheça a senhorita…
Rafaela, com um leve aceno de cabeça, dispensou a apresentação. Tocou o ombro da funcionária e murmurou: — Pode nos dar um minuto?
A funcionária concordou com um aceno, retirando-se e fechando a porta. A mulher se aproximou, seus olhos perspicazes transmitindo tranquilidade.
— Meu nome é Rafaela — Se apresentou, sendo direta. — Se envolveu em uma briga com outras crianças. Por quê?
— Você é assistente social? — Hazan indagou, desconfiando da estranha mulher.
— Não, garoto. Não gosto de assistentes sociais.
— Então não sou obrigado a falar com você.
Em silêncio, Rafaela observou cada detalhe do quarto e do próprio garoto, que permanecia de costas. Seus olhos finalmente pousaram no cordão partido sobre a escrivaninha.
— Se eu consertar esse cordão, você responderá minha pergunta? — Propôs a mulher.
Pela primeira vez, Hazan se virou, e Rafaela pôde contemplar o rosto de seu sobrinho.
Um hematoma arroxeado marcava o canto do olho esquerdo, e seus cabelos desgrenhados caíam sobre os ombros, tão desordenados quanto os dela. Olheiras profundas refletiam uma exaustão precoce, e os lábios estavam ressecados, com várias rachaduras.
— Você consegue mesmo consertar? — Indagou, as sobrancelhas franzidas. Hazan não fazia questão de esconder a sua desconfiança.
Rafaela sorriu e acenou. Hazan parou, as sobrancelhas franzidas, relaxou e acenou de volta, afirmando com o rosto e dando permissão para a estranha pegar seu cordão. A mulher pegou o objeto e começou a examiná-lo.
O fio tá arrebentado… Para garantir que não aconteça de novo, um nó de sangue deve ser o suficiente.
O garoto disfarçou a sua ansiedade, tentando não encarar o que Rafaela fazia. Mas não demorou muito para o cordão estar restaurado.
Rafaela estendeu o cordão para o garoto, que o colocou no pescoço na mesma hora. Um sorriso surgiu, tão inesperado e genuíno, que aqueceu algo no peito de Rafaela. Ela não demonstrou, mas naquele instante, viu o menino que ele ainda poderia ser — uma criança normal, e estava disposta a fazer de tudo para tornar isso realidade.
— Pode responder à minha pergunta agora?
Hazan hesitou por um momento, mas a gratidão falou mais alto.
— Eles… eles insultaram minha mãe… — Começou a relutar. — Disseram que ela morreu como uma vadia cheia de dívidas… — De repente, sua postura mudou, a face demonstrando raiva. — Aí eu dei uma surra neles!
— Se tivesse lutado no lugar de onde eu venho, não sobreviveria nem por um minuto nesse tipo de confronto.
O garoto encarou o chão, cerrando os punhos machucados. — Não ligo, eles mexeram comigo e eu dei o troco. Faria o mesmo em qualquer outro lugar do mundo.
— E você se sentiu melhor fazendo isso? Sentiu alívio?
Hazan possuía uma face confusa, um redemoinho de emoções que não era capaz de externar para fora.
— Tenho vários sacos de pancada na minha casa — comentou Rafaela, a voz suave. — Se decidir vir comigo, um deles será inteiramente seu. Quando se sentir estressado ou com raiva, pode descontar tudo nele. O que me diz?
Os olhos do garoto, ainda repletos de relutância, encontraram os dela, e por um instante, um lampejo de conexão se estabeleceu.
— Não quero… — Apertou o punho envolta do cordão. — Estou bem aqui.
Um momento de tristeza profunda envolveu a sala, uma névoa densa que se infiltrava nos cantos mais escuros da alma. A mulher, com sua própria bagagem de memórias dolorosas, permitiu que um vislumbre de compaixão emergisse em seu coração.
— Lamento pela sua mãe. — Se aproximou, abaixando na mesma altura que Hazan e tocando no ombro dele. — Eu também já perdi alguém que me importava muito — disse, seus olhos estabelecendo um elo de simpatia entre os dois. — Quando seu pai desapareceu, me senti impotente na época. Tentei procurá-lo por bastante tempo, mas… Não deu muito certo.
Uma reação imediata, o garoto a encarou furioso, afastando o toque no ombro com um tapa. — Eu nunca tive um pai! Ele nos abandonou, a mim e à minha mãe! — vociferou, trazendo consigo uma avalanche de sentimentos dolorosos.
Ao se deparar com tamanho ressentimento de Hazan em relação ao pai ausente, decidiu escolher suas palavras com cautela.
— Seu pai era alguém muito compromissado com seu trabalho, e um dos melhores policiais que eu já vi.
Porém, aquelas palavras já não eram capazes de alcançar uma criança tomada pelo amargor e pela culpa.
— Não importa. O rosto… a voz… o nome… eu não lembro de nada sobre ele. — Encarou Rafaela nos olhos. — Você… conhecia ele?
Pela primeira vez, a mulher enxergou aquela avalanche de emoções que o garoto lutava para esconder: seus olhos estavam marejados.
Rafaela desviou o olhar, ponderando suas próximas palavras e relembrando o passado. — Ele era o meu irmão.
Hazan estreitou os olhos, sua desconfiança evidente. Ele não era um garoto de fácil persuasão; a dor do abandono havia endurecido algo dentro dele.
Limpou as lágrimas, aproveitando para esconder sua expressão ferida. — Heh, então agora você diz que é minha tia? — provocou, cruzando os braços em uma tentativa de esconder o tremor das mãos. — E por que minha mãe nunca me falou de você?
Rafaela manteve a calma, embora um leve tremor em seu rosto revelasse o desconforto de se expor àquela dor. Sem palavras, enfiou a mão no bolso do casaco e retirou uma carteira de couro surrada, abrindo-a com cuidado. Dali, retirou uma foto antiga, desgastada pelo tempo, mas ainda nítida o bastante para exibir uma lembrança esquecida.
— Toma — ela disse, estendendo a foto em silêncio, observando-o com atenção.
Hazan hesitou, mas aceitou o pedaço de papel com um certo cuidado, seus dedos pequenos e hesitantes. Seus olhos percorreram a imagem sem acreditar no que viam.
Na fotografia, sua mãe aparecia mais jovem, com um sorriso radiante, uma mão repousando sobre a barriga arredondada — claramente grávida. Ao seu lado, um homem em uniforme de policial, com a expressão segura e orgulhosa, a envolvia em um abraço. Por mais que tentasse, Hazan não era capaz de reconhecer seu rosto.
Do outro lado da mãe, Rafaela, com uma aparência mais infantil, olhava para a câmera com um semblante retraído, o cabelo amarrado em um rabo de cavalo. Todos sorriam, congelados em uma felicidade que parecia de outro mundo para ele.
Sentiu uma pontada no peito; uma mescla dolorosa de raiva, saudade e uma nostalgia desconhecida. Aquela era sua mãe — uma versão dela que nunca conhecera, saudável e feliz, cercada por pessoas que nunca tivera em sua vida. Piscou várias vezes, tentando conter as lágrimas, mas aquelas emoções conflitantes o afundaram.
— Esse… é o meu pai? — sua voz saiu quase num sussurro, como se temesse a resposta.
Rafaela assentiu devagar, sem desviar o olhar.
— Sim… — disse ela, sua voz num tom de quem carrega cicatrizes antigas. — E, bem… essa sou eu, ali do lado. A gente não tinha uma relação fácil, eu e sua mãe. Mas seu pai nos mantinha unidas. Houve motivos para ele partir, mas eu… — ela hesitou, deixando um vazio pairar no ar. — Naquela época, eu estava tentando construir minha carreira como lutadora de muay thai na Tailândia. Nesse dia, eu tinha acabado de ganhar minha primeira competição.
— Por que… por que não veio antes? — A pergunta saiu amarga, ressentida, cada palavra carregando anos de abandono e solidão. — Quando minha mãe estava doente?! Quando ela precisava de ajuda!?
— Eu não sabia de nada disso, a notícia me deixou surpresa. Tive que resolver alguns problemas… A documentação necessária para me tornar responsável por você. Mas prometo que vim o mais rápido que pude.
Novamente, retirou gentilmente a mão do garoto que escondia as lágrimas caindo, envolvendo suas mãos com um aperto caloroso e encarando-o intensamente. Olhos firmes e confiantes contra olhos ansiosos e desconfiados.
— Hazan, eu gostaria que viesse morar comigo. Tenho uma casa enorme, um quarto exclusivo para você, com uma cama quente e aconchegante. E, embora não apague o que você passou, eu quero estar aqui… quero fazer parte disso. Eu estou aqui agora, e sou a sua única família. — convidou, permeando suas palavras com a esperança de um futuro mais luminoso. — Você gostaria de vir comigo?
Hazan, ainda digerindo a enxurrada de informações, relaxou os punhos cerrados e decidiu dar voz à pergunta que há tempos queimava em sua alma.
— Por que ele foi embora? — perguntou, os olhos tremendo e revelando parte de sua fragilidade.
— Não é algo que posso responder agora, Hazan. Não do jeito que você merece ouvir. Só posso dizer que… ele fez o que achou melhor.
Ele ficou em silêncio, absorvendo aquelas palavras e a foto em suas mãos, encarando a felicidade da mãe, do pai e da própria Rafaela — um vislumbre de uma vida que nunca conheceu. Entre indignação e saudade, se limitou a apertar o papel, suas mãos pequenas tremendo, sem ter certeza se queria aceitá-la em sua vida ou não.
Mas, pela primeira vez em muito tempo, não estava sozinho. E, mesmo sem saber, talvez aquele fosse o primeiro passo para abrir uma nova porta.
❧ ⚜ ❧ ⚜ ❧
Era como testemunhar a fragmentação de um sonho antigo, um delírio que há muito habitava as camadas ocultas de seu inconsciente. Não sabia ao certo se estava acordado ou preso num limiar entre tempos e mundos. Os sussurros incompreensíveis pareciam vir de todos os lugares e de nenhum, reverberando nos recessos mais sombrios e secretos de sua alma.
Sua visão estava embaçada, e os contornos de tudo ao redor se misturavam numa vastidão sem forma. Buscava compreender, mas a mente não reconhecia o que via. Não havia chão, nem céu, nem horizonte, e mesmo assim, algo o envolvia, uma presença que ia além dos sentidos.
O espaço ao seu redor parecia feito de uma escuridão vívida, de tonalidades que nenhuma palavra mortal poderia definir. Uma energia pairava, mais antiga do que qualquer lembrança ou história, fluindo em ondas que tocavam os limites de sua alma.
Havia um roxo denso, profundo e eterno, irradiando na forma de uma ferida cósmica aberta, cercada de sombras que se entrelaçavam num negro absoluto, enquanto fios de branco cortavam o vazio como rastros de luz aprisionada. No fundo, um púrpuro incandescente palpitava, pulsando devagar, mas com uma força que parecia reger todo o silêncio daquele abismo.
Por um momento, sentiu que tudo isso o observava. Havia uma presença invisível, sem rosto, sem nome, mas tão essencial quanto o próprio nada.
As cores – se é que se podia chamá-las de cores – dançavam em padrões imprevisíveis, sem começo ou fim, representando um espaço em constante nascimento e morte, dissolvendo-se num ciclo eterno. Era um espetáculo de existência sem propósito, uma energia que transcendia qualquer sentido, qualquer definição.
— Sua alma repousa na fronteira entre duas existências — sussurrou a voz, pesada e profunda, com um tom que vibrava não apenas em sua mente, mas em cada célula de seu corpo. — Você não pertence a lugar algum. Está condenado a vagar para sempre, uma alma perdida em meio ao vazio imensurável.
As palavras se ancoravam em seu âmago, correntes invisíveis que aprisionavam e, ao mesmo tempo, seduziam. Por um instante, Hazan exibiu um sorriso irônico, uma risada descompromissada brotando de seus lábios secos.
— Vagar pela eternidade, é? Finalmente, um pouco de descanso… — murmurou, ainda que houvesse mais vazio do que ironia em sua voz.
A voz não cedeu. Aquela presença continuava a espreitá-lo.
— Se escolher tornar-se meu arauto, concederei um desejo. Apenas um. O que mais almeja este coração que não conhece repouso?
As palavras ecoaram, e pela primeira vez, Hazan se viu afundando em algo além de sua exaustão. Nunca havia parado para refletir sobre o que queria, de fato. Hazan nunca teve um desejo, uma ambição que partia apenas dele.
Um desejo…
— … Qualquer coisa? — indagou, sua voz resoluta e plena de determinação, por estar disposto a enfrentar os desejos mais profundos que haviam sido reprimidos ao longo de sua vida.
A presença ao seu redor se intensificou, ajustando-se a um silêncio que continha mais perguntas do que respostas.
— Revela-me o teu desejo, ó alma errante.
Silêncio.
Seu coração palpitava com um ritmo que não reconhecia. Era um som primal, um tambor cósmico que se misturava aos ecos da entidade. Lentamente, ergueu os olhos, encarando o infinito, e, com o próprio cosmos à sua espera, murmurou:
— O que eu desejo… o que eu realmente desejo é…
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A morte não traz a paz para quem viveu em guerra consigo mesmo.
Abriu os olhos, e seu olhar foi capturado pelo teto enigmático que se erguia acima. Uma estrutura de arquitetura gótica, esculpida em mármore negro, inscrições brilhantes adornadas em um roxo chamativo.
No centro desse teto majestoso, uma pintura se destacava: uma balança dominava a arte, sua figura central e imponente. À esquerda, um planeta azul e detalhado irradiava vida e complexidade, contrastando com o lado direito, onde o símbolo do infinito surgia em uma variedade de cores vibrantes.
A pintura era uma explosão de beleza e cores vívidas, com a balança, moldada em bronze, ostentando inscrições misteriosas e símbolos intrincados. As cores se misturavam harmoniosamente, criando um espetáculo visual cativante.
Uma sensação gélida nas costas o fez levantar. Encontrava-se no centro de um altar, cercado por estranhas runas e padrões desenhados no chão em um círculo intrigante. Uma agonia súbita apertou-lhe o peito, e uma dor de cabeça insuportável martelava suas têmporas.
— Onde estou? — murmurou, uma mão pressionando a testa.
Olhou para as próprias roupas, notando que havia um cordão familiar por cima da blusa preta.
Um cordão? Isso é…
Não lembrava da existência daquele objeto, e isso trouxe a sensação de ter perdido algo importante.
— Espera… Quem sou eu!?
A dor de cabeça se intensificou, ameaçando partir sua mente ao meio, enquanto lembranças confusas dançavam à beira de seu pensamento.
Sei que vim da terra, e lembro perfeitamente de como era o meu mundo, mas por que não consigo lembrar de nenhum detalhe relacionado a minha vida!?
Tentou se lembrar, forçando a mente a reviver fragmentos do passado, mas isso apenas intensificou a dor latejante. Caiu de joelhos, apoiando a testa no chão, as mãos agarrando os cabelos em agonia.
Que dor!
Fechar os olhos com força e deixar as perguntas de lado foi a única forma de acalmar aquele turbilhão de dores crescentes. Quando finalmente abriu os olhos de novo, decidiu prestar atenção na pintura acima.
Vamos esquecer isso por enquanto… Aliás, por que o planeta pesa mais na balança do que o infinito?
Seu olhar vagou pelas paredes que o cercavam, escuras iguais o espaço sideral, cobertas por inscrições antigas que brilhavam em tons de púrpura, como as nebulosas distantes. À sua frente, uma porta dupla colossal pairava, transmitindo imponência.
Nos cantos da porta, duas estátuas femininas chamaram sua atenção. A primeira retratava uma mulher de beleza sobrenatural, vestida em seda, cabelos longos e cacheados que se estendiam até a cintura. Seu véu cobria os olhos, e ela sorria com compaixão, sua postura era acolhedora, estendendo a mão como se oferecesse ajuda.
Ao lado, a segunda estátua, também feminina, replicava a mesma pose, mas havia diferenças marcantes. Seus cabelos curtos mal ultrapassavam o pescoço, e seu rosto estava oculto por uma máscara.
Embora ambas compartilhassem a mesma pose, a segunda estátua escondia suas emoções.
Foco! Não posso perder meu tempo aqui, preciso dar um jeito de sair desse lugar.
Andou em direção à porta, e assim que se aproximou, a estrutura começou a se abrir, tremendo o chão e as paredes do templo.
Ao terminar de abrir, o que se revelou não fora uma passagem comum, mas um tipo de fumaça translúcida que impedia o jovem de ver o que havia do outro lado. Sombras cinza que transmitiram um mistério para o rapaz. Uma fina camada entre ele e o que existia depois daquela passagem.
Em transe, estendeu a mão para aquilo. Então, antes que pudesse encostar, uma tela apareceu diante de seus olhos, uma tela com um aspecto púrpuro e que exibia informações. Recuou, franzindo as sobrancelhas, surpreso ao notar que era capaz de entender tudo o que estava escrito.
[Passe pela provação dos últimos devotos da justiça: Eros, a fugitiva da luz e Thanatos, o perseguidor da escuridão].
Tentativas: 0/10
Recompensas:
– Fragmentos de memórias
– Coração de Ehdoton
– Desbloqueio temporário do “Sistema”
Falha: Se tornar um errante de Malefyr
Não entendi metade do que isso quer dizer, mas… Fragmentos de memórias? Definitivamente preciso disso. Vale a pena tentar!
Hazan ignorou a tela em sua frente, passando por ela e indo em direção à entrada. Uma sensação formigante tomou o seu corpo quando ultrapassou aquelas sombras, nublando sua visão e deixando a mente leve.
Que reconfortante…
Assim que atravessou, abriu os olhos, mas não enxergou muito longe, apenas sentindo o peso da atmosfera sombria que pairava ali. A escuridão era opressiva, com apenas tênues feixes de luz vermelhos que vinham de vitrais quebrados nas laterais das paredes, lançando um brilho fraco sobre o chão de pedra.
Aos poucos, tochas começaram a acender, uma por uma, fazendo Hazan arregalar os olhos com o que estava diante dele.
— N-não brinca…! — Podia estar sorrindo naquele momento, mas era puro nervosismo.
Aquela câmara representava o tamanho de uma grande arena, o chão desgastado com diversos cortes e sinais de guerra. No meio, duas estátuas se destacaram.
A primeira estátua, que encarnava a imagem de uma mulher guerreira vestida em uma armadura, estava esculpida em mármore branco, marcada pelo avanço impiedoso do tempo, onde as rachaduras eram cicatrizes da eternidade.
Apesar disso, emitia uma aura de ameaça iminente. Suas asas, longe de serem as plumas delicadas de uma criatura celestial, assemelhavam-se às asas membranosas de um morcego, prontas para mergulhar sobre qualquer intruso com fome de destruição.
A lança de ferro que segurava estava adornada com espinhos, e sua máscara exibia um sorriso gentil, contrastando com o resto de sua aparência.
Oculta sob o manto das asas da estátua anterior, outra figura surgia, ajoelhada parecendo estar imersa em profunda oração. Sua pele de um mármore escuro, e uma espada de proporções monumentais estava cravada no chão diante dele.
Seu escudo emanava um rastro de escuridão, como se absorvesse a pouca luz que existia naquela câmara. A espada, com sua lâmina negra e fulgurante, transmitia uma afiação absurda. A máscara que cobria seu rosto demonstrava uma feição forjada no puro ódio.
Ambas as estátuas, colossais com cerca de três metros de altura, pareciam estar à espreita.
Hazan, em meio a uma crescente sensação de desespero, observava perplexo quando essas figuras de pedra ganharam vida. Eros abriu suas asas, elevando-se lentamente no ar, enquanto Thanatos permanecia de joelhos, como uma sentinela sombria.
Eu… eu tenho que enfrentar essas… coisas?
Os pensamentos de Hazan vacilaram, um frio gélido o dominava.
Impossível, eu vou morre-
Slash!
Então, sem aviso, a realidade se distorceu. Eros, que estava flutuando à sua frente, simplesmente desapareceu num piscar de olhos.
A visão de Hazan se tornou turva, de repente olhando para si mesmo de um ângulo bizarro. Avistou o próprio corpo de baixo para cima, seus olhos encontrando o pescoço decepado.
O quê…?
Escuridão gradualmente tomou conta de sua visão quando a cabeça impactou contra o piso gelado, seu corpo desfazendo-se em cinzas diante de seus olhos.
Abriu os olhos, ofegante, se levantando do chão. Imediatamente colocou a mão no pescoço, alisando a garganta e checando se sua cabeça ainda estava no lugar.
— C-caralho… — falou baixinho, alisando a garganta e engolindo em seco.
Seu coração batia forte, sentindo a adrenalina percorrer pelo seu corpo.
— Se acalme! — gritou para si, batendo ambas as mãos no rosto.
Tenha foco! Ela definitivamente cortou o meu pescoço, então como isso é possível?
Decidiu olhar ao redor, notando que estava exatamente na frente da enorme porta, igual a antes. A porta permanecia aberta, e a mesma tela pairava à frente de seus olhos.
[Passe pela provação dos últimos devotos da justiça: Eros, a fugitiva da luz e Thanatos, o perseguidor da escuridão].
Tentativas: 1/10
Recompensas:
– Fragmento de Memória
– Coração de Ehdoton
– Desbloqueio temporário do “Sistema”
Falha: Se tornar um errante de Malefyr
Então eu tenho nove tentativas antes de morrer de verdade?
Cruzou os braços e as pernas, fechando os olhos enquanto pensava, as sobrancelhas franzidas.
Não sei o que eu faço… Esse é o único caminho adiante, mas não tenho confiança em lutar contra aquelas coisas.
Voltou a encarar a tela de novo, prestando atenção na descrição do sistema.
Passe pela provação… E essa mensagem estranha, é parecido com uma charada. Isso não foi escrito à toa, deve haver uma forma de vencer.
— Beleza, quero que se foda! — Se levantou, indo até a porta com os punhos fechados.
Tenho nove chances para descobrir como vencer, e não é como se ficar parado aqui fosse mudar alguma coisa!
Hazan sorriu, sentindo uma empolgação desconhecida tomar conta de seu corpo. Então, passou pela porta, adentrando a sala.