O Silêncio que Criou Deus - Capítulo 3
O ar estava denso, como se uma tempestade estivesse prestes a cair, mas sem o conforto de uma chuva para lavar o horror que Lian sentia. Ele estava no mesmo lugar de antes? Ou o livro o havia levado para algum outro mundo, alguma outra dimensão?
O monstro estava diante dele, um amontoado grotesco de carne, metal e olhos. Lian apertava o livro contra o peito, suas mãos suadas e trêmulas. Ele sabia que precisava fazer algo, mas o quê? O que o livro esperava dele?
— Você está me testando, não está? — ele sussurrou para o objeto, mas nenhuma resposta veio.
O monstro avançou, suas patas esmagando o solo com um som surdo e molhado. Seus múltiplos olhos se fixaram em Lian, piscando de forma desordenada, como se zombassem dele.
— Lian.
A voz ecoou em sua mente. Era baixa, profunda, com um tom quase paternal, mas havia algo de errado, algo… vazio.
— Quem é você? — Lian perguntou, olhando ao redor, tentando localizar a origem.
— Sou o que você abriu. Sou o que você pediu. E agora, sou o que você deve enfrentar.
— Isso não faz sentido! Eu só quero respostas! — gritou ele, dando um passo para trás.
A voz riu. Não uma risada comum, mas uma mistura de sussurros e gritos, como se mil gargantas compartilhassem o mesmo som.
— Você pediu paz. E eu mostrei o que ela pode ser. Agora, mostre o que você pode ser.
O monstro rugiu e avançou. Lian gritou, seus pés se movendo por puro instinto enquanto ele se esquivava do golpe. A criatura era lenta, mas cada movimento fazia o chão tremer. Lian tropeçou, caindo sobre uma pilha de destroços. O livro escorregou de suas mãos e caiu ao seu lado, mas, antes que ele pudesse pegá-lo, as páginas começaram a se virar sozinhas novamente.
— Não me abandone agora! — Lian gritou para o livro, a voz carregada de desespero.
As páginas pararam, e palavras começaram a se formar, surgindo como se fossem queimadas na superfície.
“Você já enfrentou o silêncio. Agora, controle-o.”
— Controlar o quê? Como faço isso? — Lian perguntou, mas o livro ficou mudo novamente.
A criatura avançou mais uma vez, e Lian rolou para o lado, escapando por pouco de uma pata gigantesca que esmagou os destroços onde ele estava um segundo antes.
— Não posso fazer isso sozinho! — Lian gritou para o vazio.
“Você nunca esteve sozinho.”
Lian sentiu algo — uma corrente de energia percorrendo seu corpo, partindo do livro. Ele o agarrou novamente, e desta vez as palavras nas páginas não esperaram. Elas brilhavam intensamente, e ele leu em voz alta, sem nem mesmo entender como sabia o que dizer:
— Que o silêncio te consuma!
O som ao redor desapareceu instantaneamente. O rugido do monstro, o tremor do chão, até mesmo os batimentos cardíacos de Lian pareceram se extinguir. Tudo o que restou foi um vazio absoluto.
O monstro parou. Seus olhos começaram a piscar descontroladamente, um a um, até que eles começaram a explodir como pequenas bolhas de carne. A criatura tentou rugir, mas não saiu som algum. Sua pele pulsava e se retorcia, como se algo dentro estivesse tentando sair.
Lian ficou de pé, observando, sem entender completamente o que tinha acabado de fazer.
— Você começa a aprender.
— Isso foi… eu? — perguntou ele, olhando para o livro.
— Foi o que você pediu. Poder. Escolhas. Consequências. Mas o que vem a seguir será mais difícil. Está pronto?
— Eu não escolhi isso! — gritou Lian, a raiva misturando-se ao medo.
O livro brilhou levemente, quase como se risse.
— Você escolheu ao abrir. Não há como voltar atrás, Lian. A questão agora é: você sobreviverá ao preço que pagou?
O monstro começou a desmoronar, sua carne dissolvendo-se em uma gosma negra que parecia ser absorvida pelo chão. Quando tudo acabou, Lian ficou sozinho novamente, a biblioteca ao longe e o silêncio mais uma vez dominando o ambiente.
Ele segurou o livro com ambas as mãos, respirando pesadamente.
— Quem é você? — perguntou novamente, sua voz fraca, mas determinada.
Desta vez, o livro respondeu, e a resposta foi mais clara do que antes:
“Sou o que resta. E agora, sou você.”
Lian sentia suas pernas tremerem enquanto segurava o livro, agora frio ao toque. O silêncio ao seu redor era tão absoluto que parecia um peso físico, pressionando seus ouvidos, sufocando sua respiração. O céu vermelho acima pulsava, e ele tinha a impressão de que algo o observava de muito, muito longe.
Ele olhou para o chão onde o monstro havia se dissolvido. Não restava nada além de uma mancha escura, que lentamente parecia ser absorvida pelo tecido estranho que cobria o solo.
De repente, um som cortou o silêncio. Não era alto, mas, em contraste com o vazio, parecia ensurdecedor: passos.
— Quem está aí? — Lian perguntou, a voz trêmula.
Os passos continuaram, ritmados, firmes, até que uma figura surgiu à distância. Era um homem, ou pelo menos parecia ser. Vestia um casaco longo, sujo de poeira e sangue seco. Seu rosto estava parcialmente coberto por uma máscara simples de metal, que refletia a luz do céu avermelhado.
— Você sobreviveu. — A voz do homem era grave, com um tom de surpresa mal disfarçada.
— Quem é você? — Lian perguntou, dando um passo para trás.
O homem ergueu uma das mãos, como se pedisse calma. Ele parou a poucos metros de distância, a cabeça levemente inclinada, como se estivesse avaliando Lian.
— A pergunta certa seria: o que você fez?
— Eu… eu não sei. — Lian olhou para o livro em suas mãos, sentindo o peso dele como nunca antes. — Eu só… queria respostas.
— Respostas. — O homem riu, um som áspero e amargo. — É sempre assim que começa. Mas o que você encontrou foi algo muito maior do que respostas, garoto. Você abriu algo que não deveria ser aberto.
Lian sentiu a raiva crescer dentro de si.
— Não fui eu quem criou isso. Não fui eu quem deixou isso aqui para alguém encontrar! — Ele ergueu o livro, quase como se quisesse jogá-lo no homem. — Então não me culpe!
O homem inclinou a cabeça novamente, e dessa vez parecia estar sorrindo sob a máscara.
— Você tem espírito. Isso é bom. Vai precisar.
Lian estreitou os olhos.
— Do que você está falando?
O homem deu alguns passos à frente, agora perto o suficiente para que Lian visse os detalhes da máscara: runas delicadas e intrincadas gravadas em sua superfície.
— O livro não escolhe qualquer um. Ele precisa de alguém especial. Alguém que possa suportar o fardo. — Ele apontou para o livro. — E agora, você é esse alguém.
— Especial? Eu não sou especial! Eu só queria entender o que aconteceu com o mundo!
O homem cruzou os braços, inclinando-se levemente para frente.
— E o que você descobriu?
Lian abriu a boca para responder, mas parou. Ele não sabia o que dizer. Tudo o que havia experimentado desde que abrira o livro era caos, horror e morte.
— Eu não sei. — Ele olhou para o chão. — Só sei que isso… isso não vai acabar bem.
O homem deu uma risada curta, quase um grunhido.
— Finalmente, algo em que concordamos.
Antes que Lian pudesse reagir, o homem ergueu um objeto pequeno, parecido com um relógio de bolso. Ele apertou um botão, e uma luz azul fraca irradiou do dispositivo.
— O que é isso? — perguntou Lian, dando um passo para trás.
— Um teste. — O homem apertou outro botão, e a luz intensificou-se. — Se você realmente é o escolhido pelo livro, então sobreviverá ao que está por vir.
Lian sentiu o chão tremer novamente, mas dessa vez era diferente. O tremor vinha de baixo dele, como se o solo estivesse prestes a desabar. Ele olhou para o homem, que permaneceu parado, como se estivesse esperando algo.
— O que você fez?! — gritou Lian.
— Apenas trouxe a próxima peça do quebra-cabeça. — Ele gesticulou em direção ao horizonte.
Lian seguiu o olhar do homem e viu algo que o fez perder o fôlego: uma torre gigantesca emergindo do chão, sua base envolta em uma luz pulsante. A estrutura parecia feita de pedra negra e ossos retorcidos, com espirais que se estendiam para o céu como garras.
— O que é isso? — Lian sussurrou.
— A primeira torre. — O homem recuou alguns passos. — O começo da verdadeira prova.
O livro começou a aquecer novamente nas mãos de Lian, suas páginas se abrindo mais uma vez. Ele olhou para as palavras que surgiam, cada uma delas brilhando como fogo.
“Suba ou pereça.”
Lian sentiu o sangue gelar.
— Você não pode estar falando sério…
O homem apenas deu de ombros.
— O livro nunca brinca.
Antes que Lian pudesse protestar, o chão sob seus pés começou a se transformar, empurrando-o em direção à base da torre. Ele tentou resistir, mas era inútil.
— Boa sorte, garoto. — A voz do homem soou distante, enquanto Lian era arrastado em direção à entrada da estrutura.
A última coisa que ouviu antes de atravessar os portões foi o sussurro familiar do livro:
“O silêncio guiará seus passos.”
E então, tudo ficou escuro.